GUARDA MUNICIPAL: Ontem, Hoje e Amanhã

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guarda municipal

Entrevista Edcarlos Alves Lima

As forças de segurança e suas atribuições são temas que despertam muitos debates na atualidade. Ao mesmo tempo em que a previsão da guarda no âmbito constitucional a afasta (ainda, pois a PEC-32-B pretende aproximar) dos tradicionais órgãos de segurança, a Lei nº 13.675/2018, por sua vez, incluiu as guardas no tratamento dado à segurança pública. A guarda municipal relaciona-se com proteção municipal preventiva, de acordo com o Estatuto da Guarda (Lei nº 13.022/2014), sendo que o art. 4º a associa, no geral, com a competência relacionada: à proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município.

O tema da entrevista é dos mais candentes e mutáveis, com inúmeras controvérsias, que é a Guarda Municipal. O entrevistado do Portal DireitoAdm convidado é Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Gersão Pública pela Universidade Tecnológica do Paraná e Advogado-Chefe do Município de Cotia, com ampla pesquisa em diversas questões envolvendo direito público e também os poderes do Município em sua organização, inclusive no tocante às guardas municipais.

Primeiramente, muito obrigada pela disposição de esclarecer o público do Portal DireitoAdm essa questão. Há controvérsias que gravitam em torno da identidade funcional da Guarda Municipal, mesmo com a edição do Estatuto da Guarda, no tocante às atribuições. Você poderia, por gentileza, nos explicar, em linhas gerais, o que é a Guarda Municipal e quais são as suas funções constitucionais e importância para o Município?  

Edcarlos Alves Lima: De forma inicial, eu é que gostaria de agradecer a oportunidade de me comunicar para um público tão seleto que acompanha o Portal DireitoAdm, que traz conteúdos relevantes e atualizadíssimos em torno dos temas debatidos na área do Direito Administrativo.

De fato, a temática envolvendo as atribuições funcionais da Guarda Civil Municipal é polêmica e tem gerado repercussões na atuação deste importante órgão presente na estrutura de considerável parcela dos Municípios brasileiros. Aliás, segundo dados do IBGE (2019), dos 5.570 Municípios brasileiros, 21,3% deles possuem guardas municipais instaladas (algo ao redor de 1.188 Municípios).

Uma primeira ponderação a ser feita é que as guardas municipais não foram alçadas à categoria de forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro, bem como não estão constitucionalmente revestidas do poder de polícia ostensiva ou de polícia judiciária.

Cabe anotar que o exercício do policiamento ostensivo foi constitucionalmente reservado, no âmbito da União, à polícia rodoviária federal e, nos Estados e Distrito Federal, às polícias militares. De igual forma, a polícia judiciária é exercida pelas polícias civis, nos Estados e Distrito Federal, e polícia federal, no âmbito da União.

Ainda que a guarda municipal tenha sido prevista no capítulo que trata da Segurança Pública (art. 144), ela não foi alçada à categoria de órgão de segurança pública, tendo o constituinte originário tão somente facultado aos Municípios a sua instituição, com atribuições restritas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei (§ 8).

Com a finalidade de regulamentar o § 8º do art. 144 da Constituição Federal, foi editada, em caráter nacional, a Lei nº 13.022, de 8 de agosto de 2014, sob a denominação de “Estatuto Geral das Guardas Municipais”, que trouxe, em seu Capítulo III, um rol de competências, de forma a esmiuçar as atribuições constitucionais deferidas às Guardas Municipais. No referido rol, foi previsto, dentre outras, o exercício próprio, ou de forma concorrente, mediante convênio com o respectivo órgão do Estado ou Município, das competências de trânsito em vias e logradouros municipais, nos termos do Código de Trânsito Brasileiro.

Em linhas gerais, o papel constitucional da guarda municipal é, no território circunscrito do respectivo ente que a instituir, garantir a proteção de seus bens, serviços e instalações, cabendo a ela o exercício de outras funções, desde que atrelada à referida competência geral e não conflite com aquela atinente a outros órgãos federais e estaduais de segurança pública.

O legislador infraconstitucional cuidou de delinear, no art. 5º da Lei nº 13.022/2014, as competências especificas das guardas municipais, conformando a sua atuação à proteção, zelo, prevenção e vigilância do patrimônio e serviços públicos, assim como à proteção sistêmica das pessoas que dele se utilizam.

Feitas estas ponderações, e relembrando a célebre frase de Franco Montoro de que as pessoas vivem no Município e não na União ou nos Estados, isto é, é nos Municípios que a vida, efetivamente, acontece, é mister reconhecer que a presença da Guarda Municipal no território de um Município gera grande sensação de segurança para toda a população.

Talvez, a escassez de quadro de pessoal existente no âmbito das corporações policiais dos Estados, tenha conduzido as guardas municipais a assumirem o papel de policiamento ostensivo e, não raras as vezes, o exercício de polícia judiciária, de modo a se deslocarem do papel delimitado pela constituição e pelo estatuto nacional.

Não obstante, não se pode deixar de reconhecer que a guarda municipal é um importante órgão de apoio à segurança pública no contexto municipal, devendo atuar em parceria com os órgãos de polícia ostensiva e judiciária, como em ações coordenadas de segurança e de repressão à violência urbana e ao patrimônio público do Município.

Qual a diferença entre o poder de polícia e a polícia judiciária no tocante às atribuições e como se insere a Guarda Municipal neste quadro de atividades? Poderia comparar as atribuições com as corporações policiais?

Edcarlos Alves Lima: O tradicional conceito de poder de polícia decorre do art. 78 do Código Tributário Nacional, que o define como:

(…) atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Na visão de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 815), a expressão “poder de polícia” pode ser entendida a partir de dois sentidos: i) em sentido amplo, seria a atividade estatal condicionadora da liberdade e da propriedade, de forma a ajustá-las ao interesse coletivo, o que abrange a atuação do Poder Legislativo (edição de atos normativos primários); e ii) em sentido estrito, seria toda intervenção, seja geral e abstrata, seja concreta e específica, do Poder Executivo, destinada a prevenir e obstar o desenvolvimento de atividades particulares que contrastem com os interesses coletivos. Essa acepção mais restrita corresponderia à noção de polícia administrativa.

Há uma linha tênue que distingue o papel de polícia administrativa, que também possui o seu papel repressor de atividades antissociais, daquele conferido à polícia judiciária. Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 815), o que as diferencia é que a polícia administrativa se concentra em impedir e paralisar atividades antissociais, enquanto a polícia judiciária se predispõe a responsabilização dos violadores da ordem jurídica.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2019, p. 322/333) nos aponta algumas outras diferenças importantes: i) a polícia administrativa atua no campo do ilícito puramente administrativo, seja de forma preventiva ou repressiva, e é regida pelo direito administrativo e incide sobre bens, direitos ou atividades, enquanto a polícia judiciária atua quando o ilícito é penal, regendo-se pelo direito processual penal e incidindo sobre pessoas; e ii) a polícia judiciária é privativa de corporações especializadas (polícias civil e militar), ao passo em que a polícia administrativa se reparte entre os diversos órgãos que compõem a Administração Pública, além da própria polícia militar.

Traçadas as diferenças entre os institutos, é importante termos em mente que as guardas municipais estão limitadas ao exercício do poder de polícia administrativa (prevenção e repressão a bens, direitos ou atividades exercidas no território do ente municipal), que, de acordo com a Lei nº 13.022/2014, depende da previsão expressa em lei municipal do ente ou, de forma concorrente, mediante convênio celebrado com o órgão de trânsito estadual ou municipal.

A diferença, portanto, das guardas municipais em relação às corporações policiais é que estas possuem a competência para o exercício tanto do poder de polícia administrativa quanto, de forma privativa, da polícia judiciária (atuação preventiva e ostensiva para repressão à prática de crimes tipificados na lei penal), enquanto que aquelas, desde que previsto em lei essa atribuição, estão restritas ao exercício do poder de polícia administrativa.

Já houve decisão judicial paradigmática que procurou limitar a atuação da Guarda Municipal quando ela extrapolou de suas competências próprias e agiu como polícia judiciária?

Edcarlos Alves Lima: Sim. Aliás, as atividades exercidas, na prática, pelas guardas municipais, têm sido confrontadas judicialmente, haja vista que, não raras as vezes, a sua atuação extrapola o limite das competências atribuídas a tal órgão municipal. O Judiciário é, portanto, chamado a interpretar se a atuação da guarda, no caso concreto, está em consonância com o direito.

Segundo Kelsen a interpretação é “uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior” (1998, p. 245). Há um espaço de múltiplas interpretações do texto legal, mas qualquer delas deve manter-se dentro da moldura posta pelo texto normativo superior.

Desse modo, conforme antevisto, o § 8º do art. 144 da Constituição Federal é a moldura dentro da qual deve ser interpretada a Lei nº 13.022/2014 ou qualquer outra lei municipal que verse sobre a atuação da guarda municipal.

Neste contexto, em um caso recente julgado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Ministro Nefi Cordeiro (RE 1.854.065-SP), houve a invalidação de provas colhidas em situação de flagrância, que decorreu de atuação investigativa conduzida pela guarda municipal.

Na ocasião, reafirmou a Corte que inexiste óbice à prisão em flagrante efetivada por guardas municipais ou qualquer outra pessoa, o que se alinha ao disposto no art. 301 do Código de Processo Penal. Porém, no caso analisado, a guarda municipal exerceu típica atividade investigatória e de policiamento ostensivo, que constituem funções típicas das polícias civis e miliares, não se coadunando, portanto, às competências deferidas pelo § 8º do art. 144 da Constituição Federal.

O Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 658.570 de Minas Gerais decidiu, com repercussão geral, o que deu ensejo ao tema 472, que, dentro da esfera de atribuição, delimitada pelo Código de Trânsito Brasileiro, os Municípios podem determinar que o poder de polícia seja exercido pela Guarda Municipal. Tendo em vista esse julgamento ficou mais clara a distinção entre as atribuições da guarda em contraponto com corporações originariamente desenhadas para cuidar de segurança pública, ou a Lei nº 13.675/2018 extrapola e desorganiza novamente as categorias?

Edcarlos Alves Lima:  O exercício do poder de polícia administrativa pelas guardas municipais era tema controverso, o que, decerto, trouxe repercussão geral ao assunto, tendo sido, em tese, pacificado com a fixação da seguinte tese no RE 658.570-MG: “É constitucional a atribuição às guardas municipais do exercício de poder de polícia de trânsito, inclusive para imposição de sanções administrativas legalmente previstas”.

Na ementa do acórdão proferido pelo STF, ficou claro o entendimento no sentido de que o poder de polícia não deve ser confundido com as funções de promoção da segurança pública, cujas atribuições foram outorgadas, com exclusividade, às entidades policiais. Ademais, ficou assente que o § 8º do art. 144 da Constituição Federal não impede que à guarda municipal sejam acometidas funções adicionais à proteção de bens, serviços e instalações do Município, a exemplo do exercício da fiscalização de trânsito, cuja competência é comum dos entes da federação.

Analisando o teor do acórdão em referência, e a respectiva tese fixada, entendo que as atribuições da guarda municipal ficaram mais claras e distintas em relação aquelas exercidas pelas entidades policiais. Isto é, a guarda municipal, desde que previsto em lei do respectivo ente municipal, poderá exercer outras atribuições compatíveis com a proteção de bens, serviços e instalações, a exemplo do poder de polícia para fins de fiscalização de trânsito e imposição de sanções aos infratores.

A Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018, que disciplina a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e institui o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), incluiu as guardas municipais, diante do importante papel que desempenham, como integrantes operacionais do referido Sistema Único.

Não obstante, a atuação, não só da guarda municipal, mas de todos os órgãos integrantes do SUSP, deverá ocorrer em consonância com o disposto no art. 144 da Constituição Federal e nos exatos “limites de suas competências, de forma cooperativa, sistêmica e harmônica”, conforme prenuncia o art. 9º, da citada lei.

A comenta lei, por outro lado, não confere novas atividades e/ou competências à guarda municipal, mas apenas integra o referido órgão a um sistema estratégico para o desenvolvimento de ações voltadas à segurança pública de forma geral.

Assim sendo, entendo que, desde que observadas as competências constitucionais das guardas municipais, a sua atuação dentro do SUSP, por si só, não extrapola ou desorganiza tal categoria.

Qual a razão do Estatuto Geral das Guardas, no art. 19, ter proibido que a estrutura hierárquica utilize denominação idêntica à das forças militares, quanto aos postos e graduações, títulos e uniformes, distintivos e condecorações? Trata-se de um dispositivo integralmente cumprido ou ainda há resquícios desta cultura na atualidade e na simbologia utilizada, poderia nos exemplificar?

Edcarlos Alves Lima: A guarda municipal, cuja origem remonta a meados do século passado, sofreu grande influência das instituições militares. Segundo anais da história brasileira (BRASIL, s.d., p. 8), “a primeira força policial surgida no país foi o então denominado Corpo de Guardas Municipais Permanentes, ocorrido no longínquo ano de 1842, no antigo Município neutro da corte, que é a cidade do Rio de Janeiro”.

Nesse sentido, a meu ver, quis o legislador impedir a militarização de um órgão que, na atualidade constitucional, não foi criado com essa finalidade. A guarda municipal é, portanto, um órgão de natureza civil, justamente pela peculiaridade das atividades que exerce no território do ente municipal. A natureza civil da guarda municipal foi expressamente declarada no art. 2º do Estatuto Geral.

As forças militares, por outro lado, são órgãos de Estado calcados nos princípios de hierarquia, concretizada por postos e graduações, e disciplina, estando sujeitas a regulamentos disciplinares e, também, quanto aos crimes militares, ao código penal e à Justiça castrense.

O legislador buscou, na Lei nº 13.022/2014, desvincular a guarda municipal das forças policiais, pelo menos, em dois momentos específicos: o primeiro, no art. 14, parágrafo único, ao prever que as guardas municipais não poderiam ficar sujeitas a regulamentos disciplinares de natureza militar, devendo possuírem código de conduta próprio, conforme dispuser a lei municipal. E o segundo, no art. 19, que proibiu o uso de denominação idêntica às forças militares, quanto aos postos e graduações, títulos, uniformes, distintivos e condecorações.

As vedações previstas pelo legislador são repetidas em muitos estatutos de guardas municipais Brasil afora.

Porém, um dos resquícios ainda presentes em tais órgãos, que, repita-se, ostentam natureza eminentemente civil, é o cumprimento de suas integrantes por meio da continência, que é um gesto de natureza puramente militar.

Com a escalada da violência, ressurgem os debates sobre armas. No caso do Estatuto da Guarda, houve a previsão de uso progressivo da força. Note-se que a ideia de uso progressivo da força significa uso proporcional e não propriamente ‘crescente’… isto é, para além da interpretação literal, há uma legitimidade de uso proporcional da força quando for estritamente necessário e na medida do cumprimento dos deveres e para equilibrada contenção das ofensas. O que ocorre com aquele que extrapola e se excede no emprego da força no âmbito das Guardas Municipais, quais cuidados deve haver?

Edcarlos Alves Lima: Inicialmente, é valido trazer à baila que a Lei nº 10.826/2003, conhecida como “Estatuto do Desarmamento”, não permitia o porte de arma de fogo aos integrantes de guardas nos Municípios com menos de 50 mil habitantes e, entre 50 a 500 mil, havia a permissão apenas quando em serviço. Tais vedações, todavia, foram invalidadas pelo STF, no julgamento conjunto da ADC 38 e ADI 5.538 e 5.948, realizado em sessão virtual no mês de fevereiro de 2021, que foram relatadas pelo Ministro Alexandre de Moraes, de forma que, atualmente, qualquer integrante de guarda municipal poderá ter o porte de arma de fogo, seja em serviço ou não.

Também é importante ressaltar que o exercício de atividades por servidor público integrante da carreira da guarda municipal exige preparo constante, tais como instruções e treinamentos específicos, além de exames psicológicos periódicos.

Inclusive, a Lei nº 13.022/2014 trouxe a capacitação como uma diretriz inerente ao exercício das atribuições dos cargos previstos na estrutura da guarda municipal, tendo facultado aos Municípios a criação de órgão de formação, treinamento e aperfeiçoamento de seus integrantes ou a sua manutenção por meio de convênio com o Estado, sendo vedado, todavia, a parceria para utilização do mesmo órgão destinado às forças militares.

O porte de arma de fogo por qualquer integrante da guarda municipal pressupõe, portanto, além de treinamentos específicos prévios, a habilitação para o manuseio do tipo de arma que será empregado pela corporação, em conformidade com as diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Na Portaria nº 03, da Coordenação-Geral de Controle de Serviços da Polícia Federal, é fixado o currículo mínimo da disciplina de armamento e tiro a ser aplicado nos cursos de formação dos guardas municipais, realizados de forma inicial e também anualmente, cuja abordagem contempla tanto o aspecto teórico quanto prático, a fim de garantir a habilitação mínima para o manuseio e emprego de arma de fogo.

Portanto, o guarda municipal é devidamente treinado e habilitado para o manuseio adequado do armamento a ele destinado para o desempenho de suas atribuições. Extrapolar ou exceder no uso da força no atendimento de qualquer ocorrência, sujeita o guarda municipal a processo administrativo disciplinar, na seara administrativa, bem como, a depender do bem jurídico lesado, a processo criminal ou até de reparação cível, a depender do caso.

Por exigência legal, as guardas municipais com efetivo superior a 50 servidores e todas as que utilizam armas de fogo devem possuir órgão de controle interno, instituído por meio de corregedorias, justamente para apuração de faltas disciplinares de seus integrantes. Além disso, há necessidade de ser instituída ouvidoria própria, como forma de controle externo, a qual deverá ser independente e ter por competência receber, examinar e encaminhar reclamações, sugestões, elogios e denúncias acerca das condutas dos integrantes da guarda municipal.

Ora, o fato de a Guarda Municipal não ter a mesma função de corporações de segurança pública, com atribuições investigativas, como polícia civil e polícia federal, não significa que a guarda não tenha sua importância. Então, gostaria de esclarecesse aqui, na prática, quais as tarefas em que o munícipe pode contar com a importante retaguarda e prevenção por parte da instituição? O que ela pode fazer e o que a guarda não pode fazer, nos dias atuais, de acordo com a legislação vigente?

Edcarlos Alves Lima: Exatamente. Compreender as competências constitucionais e os seus desdobramentos legais inerentes à guarda municipal é, também, buscar enaltecer, destacar e valorizar o excelente trabalho que tais órgãos exercem no território do Município.

Nós costumamos brincar que, no Município em que há guarda municipal instalada, equipada, treinada e em regular funcionamento, o trabalho da Polícia Militar e dos demais órgãos de segurança pública se torna muito mais tranquilo de ser executado.

Além da garantia da incolumidade do patrimônio, bens e serviços públicos, a guarda municipal atua na concretização de políticas públicas e projetos importantes de prevenção e combate ao uso de drogas, com a realização de campanhas educativas em escolas municipais, assim como de amparo à mulher vítima de violência doméstica (como, por exemplo, no Município de Cotia, o projeto “Guardiã Maria da Penha”, decorrente de Convênio com o TJ/SP e o MP/SP).

Regra geral, as atividades a serem desempenhadas pela guarda municipal se inserem no escopo do poder de polícia administrativa, cujo papel se demonstrou relevante no decorrer da pandemia de COVID-19 (fiscalizando e orientando estabelecimentos sediados nos Municípios acerca das medidas restritivas impostas), bem como de colaboração com outros órgãos de segurança pública para a realização de ações conjuntas, de proteção ao patrimônio ecológico, histórico, cultural e arquitetônico do Município, dentre outras atividades se encontram delimitadas no art. 5º da Lei nº 13.022/2014.

Apesar da tentativa de uma disciplina de único estatuto da Guarda, ainda assim há muitas diferenças culturais e locais. Essas diferenças podem ser vistas tanto como aspectos peculiares, derivados das especificidades da ambiência, o que é positivo, como também de peculiaridades que ultrapassam aquilo que se espera da Guarda, de acordo com a sua conformação e estrutura legal. Poderia nos relatar aqui alguns exemplos?

Edcarlos Alves Lima: Como dizem alguns, há vários brasis dentro do Brasil. Cada Estado e, dentro dele, cada Município, possui características e culturas muito próprias e diferentes, que variam de região para região. Não é diferente em relação às guardas municipais.

Alguns entes municipais sequer possuem condições financeiras para instituir e manter guardas municipais enquanto há outros em que tais órgãos são muito equipados e operacionais, as vezes até mais do que as próprias forças policiais dos respectivos Estados.

A lei federal, ao tentar padronizar a forma de instituição e de atuação da guarda municipal, por óbvio, não levou em consideração tais peculiaridades da federação brasileira.

Há Municípios em que as guardas municipais exercem o poder de polícia ostensiva, com viaturas assim caracterizadas, fardamentos diferenciados em relação ao padrão sugestivo previsto em lei (preferencialmente, azul-marinho), bem como equipamentos e armas operacionais.

Do ponto de vista prático, tal atuação da guarda é muito bem vista pela população em geral, uma vez que há uma sensação de maior segurança e de vigilância permanente. Aliás, é isso que o cidadão comum espera da guarda municipal. Todavia, tal formato de atuação parece não encontrar, na atualidade constitucional e infralegal, qualquer respaldo.

Em alguns Municípios, inclusive, já houve a tentativa de alteração do próprio nome da instituição, de forma a denominá-la de “Polícia Municipal”, como ocorreu nos Municípios de Pedreira (Lei nº 3.674/2017), Santa Barbara d’Oeste (Lei nº 4.153/2020), Cruzeiro (Emenda à Lei Orgânica nº 29/2018 e Lei nº 4.804/2019),  Cosmópolis (Lei nº 5.160/2018), Holambra (Lei nº 922/2018), Vinhedo (Lei Complementar nº 458/2018), Pedreira (Lei nº 3.674/2017), dentre outras, todas com representação de inconstitucionalidade perante à Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo.

Qual a sua visão sobre o futuro da Guarda Municipal no Brasil?

Edcarlos Alves Lima: As discussões em torno das funções e competências da guarda municipal parecem ser infindáveis. Os movimentos que representam essa categoria lutam para que esse importante órgão municipal seja elevado à categoria de entidade policial, com todos os direitos e garantias inerentes ao regime aplicável a essa seara.

Por outro lado, os representantes das forças policiais, a fim de resguardarem as respectivas competências conferidas constitucionalmente, fazem pressão para que as guardas não lhes sejam equiparadas.

Essa forte pressão pôde ser verificada na tramitação do Projeto de Lei nº 1332/2003, de autoria do Deputado Arnaldo Faria de Sá, que deu origem à Lei nº 13.022/2014, em cujo original sequer constavam vedações que impediam a equiparação das guardas municipais às forças policiais.

Recentemente, na calada da noite, houve a inclusão, no substitutivo à Proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020, que trata da malfadada reforma administrativa, de um novo inciso (VII) ao art. 144, a fim de integrar as guardas municipais como órgão de segurança pública, responsável pela a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Isto é, se aprovada a PEC, o que parece ser difícil no atual cenário político, a guarda municipal passaria a ter poderes próprios de polícia judiciária, fulminando, de vez, as discussões em torno de sua competência e atuação na repressão à violação da lei penal.

Mais do que isso, a PEC 32/2020, no substitutivo do relator, também trouxe uma alteração relevantíssima ao § 8º, do art. 144 da CF, que afeta a natureza jurídica deste importante órgão municipal, que deixa de ser um órgão meramente administrativo (de natureza civil) para ganhar feição de órgão policial.

Desse modo, não há como se prever o que acontecerá com guardas municipais no Brasil, se é que assim a poderemos chamar no futuro. Como dizem alguns, no Brasil até o passado é incerto…


REFERÊNCIAS:

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26. ed.. São Paulo: Malheiros, 2009.

BRASIL. Ministério da Justiça e Cidadania. Cartilha: Marco Regulatório das Guardas Municipais, s.d., p. 8. Disponível em: https://www.bibliotecadeseguranca.com.br/wp-content/uploads/2021/03/marco-regulatorio-das-guardas-municipais.pdf>. Acesso em: 22 set. 2021.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

KELSEN, HANS. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Edcarlos Alves Lima

Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Gestão Pública pela Universidade Tecnológica do Paraná e Procurador Municipal designado Advogado-Chefe do Departamento de Consultoria Jurídica em Licitação, Contratos e Ajustes da Advocacia Geral do Município de Cotia (AGM/SAJJ).

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